Obrigações & Restrições. Devotos de Khalmyr (…) só podem usar itens mágicos criados por devotos do mesmo deus.
Tormenta 20, pág. 99
A primeira vez que eu pensei nisso foi semanas atrás (ou talvez meses, se eu protelar, o que eu rogo para não fazer). Foi lendo o livro básico de Tormenta 20. Eu gosto bastante de abrir páginas aleatórias do livro e reler o que está escrito lá. Numa dessas vezes, me peguei lendo a citação acima.
Imediatamente pareceu-me extremo. Buscando em outras versões de Tormenta, encontrei variações dessa regra que proíbem apenas itens de origem arcana, que não deixam de ser pré-requisitos complexos, visto que a criação de itens mágicos por jogadores vem principalmente desse meio.
Rapidamente pesquisando, descobri que isso se deve à uma história onde um Cavaleiro da Luz, que são da ordem de cavaleiros devotos de Khalmyr principal de Arton, usa um item mágico necromante para ressuscitar um aliado. Esse aliado se torna um morto vivo maligno, o que torna-se um grande problema para a Ordem da Luz. Desde então, proíbem itens arcanos aos devotos de Khalmyr.
Eu considero equipamento mágico algo extremamente essencial para aventureiros de nível alto. Eu pessoalmente, acho horrível quando um grupo de Tormenta 20 não tem um inventor para forjar seus itens mágicos, porque é dito em todos os lugares que compra-los são caros, e conseguir equipamento mágico descente e útil para o grupo nem sempre é uma realidade usando apenas as tabelas de tesouro. Para um devoto de Khalmyr no grupo, então, ele tem um problema ainda maior. Ele provavelmente deverá se tornar um nobre, para ter acesso a itens abençoados devotos de Khalmyr, acabando por restringir um pouco o escopo de um deus que tem como devotos guerreiros que simplesmente pregam por justiça.
UM DEVOTO DE KHALMYR COM ITENS MÁGICOS
Automaticamente, comecei a pensar nessa limitação como um desafio a minha criatividade. Como criar então um devoto de Khalmyr interessante e útil, sem precisar depender tanto de fatores externos como a nobreza os as conexões do personagem com a igreja. Queria criar um personagem devoto de Khalmyr que não fosse um cavaleiro da ordem da luz, ou um nobre de Bielefeld. Um devoto autossuficiente em seus itens mágicos.
Quando digo “personagem útil”, não menosprezo de maneira alguma aqueles que jogam sem pensar no macro e nos combos, mas meus grupos são extremamente gamistas, e puxam os limites da mecânica em desenvolver seus personagens, e se eu não fizer o mesmo, acabo ficando para trás nos desafios, como mestra ou como jogadora. Personagem útil, nesse caso, é um personagem que pode usar itens mágicos.
Cumprindo então os pré-requisitos óbvios, meu personagem precisaria ser um inventor devoto de Khalmyr. Tormenta 20 não incluí inventores como devotos possíveis de Khalmyr. Mas isso não é um problema imediato, visto que aggelus e anões podem ser devotos de Khalmyr (humanos também, mas ser humano é chato).
A vontade de começar a criar uma anão ferreiro devoto de Khalmyr que faz itens mágicos para aventureiros instalou na minha cabeça imediatamente. Quase tive vontade de não escrever essa matéria, tamanha óbvia a resposta parecia se tornar. Mas eu queria fugir do óbvio. Se antes, eu não me contentava em apenas ter itens mágicos por conta de vínculos sociais de um personagem, não vou me contentar em apenas ter itens mágicos se for um anão ferreiro clichê. Um inventor aggelus então.
Agora, eu preciso criar esse personagem de uma maneira que ele fique interessante. Várias vezes, nos grupos em que eu jogo, os personagens não tem suas classes imediatamente claras às aparências. Um guerreiro com um código de conduta era chamado de samurai por todo o grupo, um bucaneiro pirata é apenas chamado de pirata, muitos caçadores são simplesmente chamados de arqueiros. Queria algo assim para meu aggelus, então decidi que sua fé e sua devoção seria o principal dele. Poderia ser um inventor em sua mecânica, mas na interpretação, seria um sacerdote.
Mylkrah nasceu em Bielefeld, o reino da cavalaria. Seu pai era um grande clérigo de Khalmyr, e viu-se abençoado ao nascimento de um filho aggelus. Foi criado desde criança pelos mais brilhantes professores de todo mundo, afinal, uma criança abençoada não se via todo dia. Seu pai já dizia a todos que quisessem ouvir que seu filho seria um clérigo do Deus da Justiça. Entretanto, por mais que Mylkrah tentasse, não conseguia proferir milagres. Se esforçava mais do que qualquer outro acólito, sabendo que carregava no sangue potencial. Sua natureza espiritual conferia certos poderes a Mylkrah, mas esses eram pouco vistos como impressionantes depois de algum tempo.
Foi com as máquinas, com a alquimia, com a ciência, que Mylkrah aprendeu a brilhar. Largou suas conexões com a igreja e o reino da cavalaria, sabendo que a maneira deles de cultuar Khalmyr não era igual a dele. Mylkrah se tornou aventureiro, com aparelhos que causavam chuvas de fogo divinas e conhecimentos alquímicos que podiam curar qualquer enfermo. Quando enfrentado por demônios e cultistas, sua armadura brilhante os cega com seu poder mágico, e suas máquinas liquidam seus inimigos.
Parece muito trabalho só para ter um devoto de Khalmyr com itens mágicos sem parecem um clichê, mas eu tenho muito tempo livre, digo, gosto de trabalhar com as regras dessa maneira. Faz parte da diversão do jogo, pelo menos para mim.
Como queria um sacerdote, pensei logo numa build de Engenhoqueiro, Alquimista Iniciado e Couraceiro. Gastaria bastante dinheiro, mas Engenhoqueiro me daria a chance poder realizar pequenos milagres, assim como Alquimista Iniciado me permitiria a aura de um curandeiro que faz parte do charme de ser um sacerdote. Couraceiro por último serviria para usar armaduras dos irmãos da fé, afinal, clérigos usam armaduras.
Pronto. Um personagem que eu consideraria interessante. Não dei um nome para ele, mas fique a vontade para fazê-lo. Deu trabalho, mas eu achei extremamente divertido.
Depois desse exercício, acho que podemos arrumar maneiras de abençoar nossos itens mágicos divinos sem girar um milhão de vezes pelas regras, e de quebra, ajudar os magos a arrumarem seu equipamento arcano sozinhos.
FABRICANDO ITENS MÁGICOS COMO CONJURADORES
Uma vez ouvi os criadores de Tormenta falando que se eles não tivessem uma opção para criar um personagem que um jogador queria jogar dentro de Tormenta, esse jogador iria jogar outro jogo. A ideia de Tormenta é poder abrir qualquer tipo de personagem. Tormenta 20 possui um livro básico, um guia de NPCs e uma aventura pronta, ainda é muito pouco para responder às demandas mais específicas. E é por isso que as regras da casa sempre vão existir, principalmente em jogos novos.
Para começar esse capítulo, fui lá no Manual do Arcano, de Tormenta RPG. Encontrei as regras que eles usavam lá para mecânicas de criações de itens mágicos. Vejo que muito do design da época é marcado nessas regras, que se fossem trazidas sem adaptação ao Tormenta 20, pareceriam desbalanceados e datados. Por sorte, Tormenta 20 tem seu próprio sistema de criação de itens mágicos o qual podemos nos basear.
Um inventor consegue criar itens mágicos menores no novo nível, itens mágicos médios no décimo terceiro nível e itens mágicos maiores no décimo sétimo nível. Eu me contento a “bardo-druida-ar”, e dizer que os inventores devem ser as únicas classes a fazerem itens mágicos maiores. Talvez apenas um anão ferreiro clichê (ou um aggelus inventor) possa fazer uma Armadura da Luz, e eu estou satisfeita com isso.
Quando uso “bardo-druida-ar” como um verbo, entendam que eu digo que irei criar versões mais fracas de coisas que já existem antes. Eu sei que é uma super simplificação, mas é o que é. Arcanistas e clérigos conseguem magias de círculos mais alto um nível antes, e não são capazes de conjurar magias de quinto círculo (além de outras limitações que ainda não são pertinentes). Então, nossos forjadores arcanos e divinos precisarão estar acima dos níveis dez e catorze. Esses serão os pré-requisitos para emular tais capacidades.
Agora, é necessário definir o que diferencia qualquer conjurador em um forjador de itens mágicos. Isso fez eu me voltar à Coração de Rubi. Na quarta aventura da primeira campanha pronta oficial de Tormenta 20, é apresentado um NPC que pode ensinar um Poder de Combate para qualquer personagem do jogador que se disponha a treinar com ele. Esse poder é uma técnica para usar magias junto do ataque desarmado. Pensando nisso, é interessante perceber que um personagem só deve ter esse poder, se tiver treinado com alguém que tem esse poder. E é isso que eu quero fazer com forjadores.
Portanto, um forjador de itens mágicos precisa de poderes específicos. Puxando um pouco o antigo Manual do Arcano, acho que é justo criarmos uma diferença entre o poder que criará armas e armaduras e o poder que criará acessórios. E acho interessante que, para enfatizar como bardos e druidas são versões mais específicas de arquétipos mágicos e sacerdotais, apenas arcanistas e clérigos poderão fazer armas e armaduras. Um bardo forjador talvez não faça tanto sentindo, e a maior parte dos druidas não faria sentido passar meses em uma forja. Mas joias e pequenas esculturas fazem parte de seus imaginários.
Isso tudo é para tentar se aproximar do balanceamento previamente estabelecido pelo game design de Tormenta 20. Eu poderia só transformar os poderes antigos de TRPG em poderes de T20 e ver os magos perdendo XP para fazer itens, o que não faz sentindo no T20.
Enfim, o resultado se apresenta dessa maneira:
ARMEIRO ARCANO/DIVINO
Você pode fabricar armas e armaduras mágicas com até dois encantamentos (veja Tormenta 20 pág. 121 e 319-320). Você precisa saber e poder lançar magias que façam o que o encantamento da arma ou armadura faz. Por exemplo, os encantamentos Defensor e Defensora só podem ser implementado se você souber Armadura Arcana ou Escudo da Fé. O mestre tem a palavra final em que magia pode criar que encantamento. O nome desse poder varia de acordo com o tipo de magia conjurado por você. Pré-requisitos: Arcanista ou Clérigo, treinado em Ofício (armeiro), 10° nível de personagem.
ARTESÃO ARCANO/DIVINO
Você pode fabricar os acessórios mágicos menores (veja Tormenta 20 pág. 121 e 319-320). Você precisa saber e poder lançar magias que façam o que acessório faz. Por exemplo, o acessório Corda de Escalada só pode ser implementado se você souber Servos Invisíveis. O mestre tem a palavra final em que magia pode criar que acessório. O nome desse poder varia de acordo com o tipo de magia conjurado por você. Pré-requisitos: Habilidade de classe Magias, treinado em Ofício (artesão), 10° nível de personagem.
MESTRE ARMEIRO ARCANO/DIVINO
Você pode fabricar armas e armaduras mágicas com até três encantamentos (veja Tormenta 20 pág. 121 e 319-320). Você precisa saber e poder lançar magias que façam o que o encantamento da arma ou armadura faz. Por exemplo, os encantamentos Defensor e Defensora só podem ser implementado se você souber Armadura Arcana ou Escudo da Fé. O mestre tem a palavra final em que magia pode criar que encantamento. O nome desse poder varia de acordo com o tipo de magia conjurado por você. Pré-requisitos: Arcanista ou Clérigo, treinado em Ofício (armeiro), 14° nível de personagem.
MESTRE ARTESÃO ARCANO/DIVINO
Você pode fabricar os acessórios mágicos médios (veja Tormenta 20 pág. 121 e 319-320). Você precisa saber e poder lançar magias que façam o que acessório faz. Por exemplo, o acessório Botas Aladas só pode ser implementados se você souber Voo. O mestre tem a palavra final em que magia pode criar que acessório. O nome desse poder varia de acordo com o tipo de magia conjurado por você. Pré-requisitos: Habilidade de classe Magias, treinado em Ofício (artesão), 14° nível de personagem.
COMO INTRODUZIR FORJADORES MÁGICOS
Como eu disse, esses poderes não são pra qualquer personagem do jogador. Vamos usar o exemplo que acontece em Coração de Rubi (leves spoilers da campanha até o final do parágrafo). Para aprenderem o poder exclusivo, eles precisam primeiro descobrir que aquele estilo de combate existe, ir até um dos únicos lugares de Arton em que ele é usado e que pode ser ensinado.
Não é toda cidade que terá um forjador mágico para ensinar os personagens dos jogadores a técnica, e mesmo aqueles que existirem podem não se interessar em passar o conhecimento para frente. Magos que ficam meses enfurnados em seus pequenos laboratórios mágicos conjurando poderes, clérigos que rezam semanas a fio, tecendo bênçãos em um artefato, esse tipo de gente não é necessariamente aberta com seus segredos.
Um local onde um clérigo seria um forjador mágico interessante seria em Rhond, a cidade do Deus das Armas. Com certeza, um clérigo de Rhond deve aprender a criar armas mágicas, mas pode não querer que ser obrigado a ter níveis de inventor para isso.
Na Academia Arcana com certeza existem professores que ensinam a criar itens mágicos, mas obviamente que deve ser feito com extrema parcimônia, pois o sacrifício de mana ao criar tais itens pode ser visto como dividir parte do poder do forjador com seu item, o que não é visto com os melhores olhos.
Druidas e bardos são ainda mais complexos para encontrar referências. Com certeza algo muito específico deve acontecer na história de um druida e de um bardo para que ele decida verter à criação de itens mágicos. Talvez uma derrota tribal tenha levado um druida a implorar por Allihanna por um conhecimento que os pudesse fazer vencer, e a deusa dividiu uma centelha de seu poder para que aquele druida imbuísse a natureza dentro de seu artesanato, Um bardo especialmente dedicado às artes pode ter convencido um mestre da Academia Arcana a deixar cair alguns livros que falassem sobre o assunto, para que o bardo pudesse estudar (por conta própria, como sempre).
MAS POR QUÊ?
Eu sei que eu forcei com os druidas e bardos forjadores de itens mágicos, e sei que alguns não vão gostar da maneira que eu escrevi essas regras. Alguns vão questionar, inclusive, qual a necessidade. Eu até consegui criar um inventor devoto de Khalmyr que parece algo fora da curva para o deus, para que regras novas de criar itens mágicos?
Porque todo grupo precisa de um inventor.
Isso é algo que eu já percebi nas minhas mesas. O inventor se tornou uma figura essencial nos grupos. Armas aprimoradas podem até ser deixadas de lado, conquistadas em batalhas ou compradas por preços extremamente salgados. Mas itens mágicos não. A compra de itens mágicos e dita como rara, e o preço de compra é extremamente alto. E sem itens mágicos, um grupo não fica tão forte quanto o esperado em sua ND, e começaram a sofrer contra inimigos.
Nada disse é dito e nada disso é 100% concreto. Você pode mestrar uma mesa muito boa com nenhum dos seus jogadores usando itens mágicos. Mas o poder vindo dos itens mágicos é algo que se espera de personagens nível alto, e sem o inventor, esse poder é reservado a um preço absurdo e aos dados de Nimb nas tabelas de tesouros.
Eu queria mudar isso na minha mesa, e achei por bem compartilhar as minhas conjecturas, conclusões e resultados. Regras da casa sempre existiram e sempre vão existir, e eu tendo ser o mais fiel às regras e ao design do jogo ao criar minhas regras da casa. Espero que estas estejam boas o bastante para o crivo dos mestres que lerem essa matéria.
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